Artigo nº 027 - teórico

No capitalismo, “Tudo vira bosta!”: A destruição da educação pública e a alienação do trabalho pedagógico


A destruição do direito do povo brasileiro a uma educação pública, laica e de qualidade passa necessariamente pela alienação do trabalho que as redes municipais, estaduais e Federal estão impondo à categoria dos professores de forma orquestrada e sob a batuta do Banco Mundial e da OCDE e de um pool de fundações alheias ao fazer e ao saber pedagógico. Essa iniciativa destrutiva atua sob o manto nebuloso de dois programas essenciais: o “Todos pela Educação” e o “Escola sem Partido”.

De fato, várias ações corroboram para essa destruição sistemática da educação posta em prática pela burguesia neoliberal nacional e internacional, independente das diversas frações que a compõe em nosso país. Buscarei mostrar como essas ações já estão a compor o cotidiano do professorado na escola ou na sala de aula. E aqui tomarei o Estado do Rio de Janeiro como exemplo muito claro disso que de alguma forma acontece em outras redes também, é claro que resguardadas as idiossincrasias dadas pela própria correlação de força capital x trabalho em cada Estado ou município.

O primeiro grande ataque ao sistema público de educação foi dado anos atrás. O Estado está há quase quarenta anos sem fazer concurso público para as funções de apoio: porteiros, inspetores, coordenadores de turno, secretários, merendeiras, pessoal de limpeza e manutenção. Cobrados sobre esta necessidade imperiosa, que obviamente dá base e sustentação para o bom desenvolvimento do trabalho pedagógico e científico dos professores, a Seeduc-RJ ri e alega que são profissões extintas e sem propósito nos dias de hoje. Com isso, a sobrecarga de trabalho não para de aumentar paulatinamente à medida que os pouquíssimos profissionais de apoio vão adoecendo, se afastando da função, abandonando o cargo, envelhecendo, morrendo de tanto trabalhar. Hoje restam muito poucos funcionários concursados nas escolas e é claro que estão com muita dificuldade ou mesmo incapacidade de dar conta do pesado trabalho que despejaram sobre seus ombros. Cada vez mais, eles necessitam do apoio (inversão das funções) de professores (desviados de função) e mesmo dos próprios adjuntos e diretores de escola. Em muitos casos, algumas de suas tarefas acabam sendo delegadas aos alunos mais responsáveis ou são realizadas por estes espontaneamente, com o intuito mesmo de cooperarem com o andamento do trabalho pedagógico.

A criminosa ausência (cada vez maior) de funcionários de apoio nas escolas do Estado do Rio de Janeiro implica em vários outros problemas, como, por exemplo, o liberalismo no cumprimento das regras (regimento interno), o aumento de alunos circulando pelo pátio em horário de aula (a famosa “gazeta”), que se complica ainda mais devido à carência permanente de professores, que se traduz no que eu chamo de “greve permanente da Seeduc-RJ contra a educação pública”. A falta de pessoal de apoio facilita ainda a destruição do patrimônio escolar, os casos de bullying (em teoria muito combatido pelo oficialismo) e o aumento de ocorrências de todo o tipo, trazendo insegurança e, até mesmo medo, ao ambiente escolar, que por sua própria natureza, necessita de paz e tranquilidade para que ocorra o processo de ensino-aprendizagem.

Outro problema que surgiu anos atrás, com a propagação da ideologia pós-moderna, foi a desconfiança na ciência, nos seus métodos e na existência da verdade. Se verdade não existe, ou se cada um tem a sua verdade (e verdade aqui passa a se confundir com opinião), então: para que provas, testes e avaliações de aprendizado? Aliás, para que escolas públicas? Pouco a pouco, então, os professores foram sendo atacados como promotores de uma suposta “cultura da reprovação”. Envolto neste tipo de assédio, foi se criando, contra a autonomia do professor, a “cultura da aprovação automática”, onde o alunado é promovido de ano independentemente da sua apreensão ou não de conhecimentos.

Evidentemente que estas falhas e buracos na formação de vários estudantes, começou a comprometer o próprio cumprimento do currículo exigido. Para tentar encaixar a nova dinâmica de (pouca) aprendizagem decorrente da falta de pré-requisitos dos estudantes promovidos às séries seguintes, a Seeduc-RJ criou o currículo mínimo e mais recentemente a transformação do ano letivo em três trimestres (ao invés dos quatro bimestres tradicionais implementados até 2024). Neste “Mundo de Nárnia” criado pela Secretaria de Educação, a aprovação do aluno deve se dar se ele alcançar 15 pontos ao longo do ano (e não mais 20, como se dava anteriormente).
A cultura da aprovação e seu automatismo trouxe também a cultura dos projetos interdisciplinares, que visam conceder pontos aos estudantes que não estudam ou que vão se acostumando a não estudar por conta exatamente destes mecanismos ditos “salvadores”. Por outro lado, o professor começa a ser treinado a preencher relatórios em que precisa justificar o motivo da reprovação de cada aluno (o NOA), numa lógica behavorista em que reprovar gera um amargo castigo para o corpo docente.

Para complementar a destruição da autonomia pedagógica, foram introduzidas em todo o país a “cultura das provas externas” como forma de averiguação do saber adquirido por cada aluno, de cada escola, de cada região, de cada estado e país, o PISA, uma exigência da OCDE (cujo Brasil é membro-convidado desde 1996 – “obrigado FHC!” - sic).  Sem falar nas ditas olimpíadas que se acumulam nas diversas áreas (matemática, línguas, geografia, biologia...) a paralisar vários tempos de aulas ou mesmo um dia inteiro de aulas para suas aplicações junto ao corpo discente. Normalmente essas provas externas, a depender da vontade dos donos do poder, devem ser utilizadas como mecanismos extras de pontuação. Provas que normalmente não dialogam com as disciplinas e os conteúdos trabalhados no(s) trimestre(s) - ou anteriormente, no(s) bimestre(s).

Mas a destruição de nossa tão temida profissão, tão necessária para que a IA avance, passa também pela intervenção estatal sobre os diários de classe que por tradição sempre foram mantidos pelos professores e pelas secretarias das Escolas. Atualmente há uma chuva de diários de todos os tipos, gerando uma confusão proposital e um cansativo e exaustivo trabalho repetitivo que subtrai tempo pedagógico e de vida dos profissionais da área. Pior, os diários viraram uma fonte de controle, controle, em tese, de notas (que com a gradativa aprovação automática já quase nada significam), mas muito mais obsessivo quando o assunto é o controle de presenças, faltas e ocorrências (afinal cada vez mais projetos dos governos concedem benefícios e bolsas aos alunos que permanecerem ativos). Atualmente a Seeduc-RJ criou e nos obriga a manter de 2 a 3 diários de classe, dependendo da escola: o Conexão, o diário oficial da escola (que pode ser manual ou digital) e como plano piloto em algumas escolas o Diário Online de Faltas e Presenças, onde se tica (quando a ticagem do conteúdo aparece para o professor, é claro!) e se descreve o conteúdo trabalhado a cada aula dada. Mas, como esses diários online não dialogam entre si, a maioria dos professores, a fim de manter um mínimo de controle da sua atividade profissional, acaba se vendo obrigado a criar um quarto diário: uma planilha de tipo Excel ou mesmo um controle de caderno.

Outra faceta da destruição são as reuniões de Conselho de Classe. Como as notas passaram a ser um detalhe de menor importância, os conselhos estão se transformando num desaguadouro do desagradável. No Conselho é fácil perceber que agora somos apenas parte de um jogo, de uma engrenagem, onde sobrou apenas considerações de ordem ora disciplinar ora moral, como ocorrências em sala de aula, se a turma é boa, regular ou insuficiente nos aspectos de aprendizado, interesse e disciplina. O conselho virou uma espécie de desaguadouro de todas as frustrações e mágoas advindas de um processo onde somos transformados em apêndice de uma indústria cuja meta é a aprovação automática, bem a moda “The Wall: O filme”, e a escola vai se transformando numa colônia de férias (escola = lazer) ou quando fracassa nesse aspecto, depósito de jovens (escola = prisão). Mas, nesse caso, uma prisão bem permissiva (como também ocorre nas penitenciárias por aí afora, onde quase tudo é possível).

Outro absurdo é a migração “voluntária” dos trabalhadores do regime de 18 horas semanais de trabalho para 30 horas. Isso acontece justamente porque desde 2014 a Secretaria de Educação não faz concurso público para professores. Para suprir a carência de professores o Estado usou e abusou durante anos do artifício da GLP (uma espécie de hora-extra pagando a metade do valor da hora-aula), que visavam os professores efetivos. E majoritariamente são estes que agora migram para o regime de 30 horas. Uma solução meia-boca: que gera um aumento da renda destes trabalhadores, mas a partir do aumento da sobrecarga de trabalho. Sobrecarga, aliás, que se dá em meio à precarização da profissão e das condições de trabalho.

Isso se agrava se considerarmos que cresce o número de professores contratados em regime temporário e/ou “uberizados”, que, segundo estatística recente, desde 2022 ultrapassaram o número de professores concursados em todo o país (vide o quadro abaixo extraído do famigerado site “Todos pela Educação”: https://todospelaeducacao.org.br/noticias/numero-de-professores-concursados-nas-redes-estaduais-e-o-menor-em-dez-anos-aponta-estudo/).

Gráfico sobre a relação entre docentes concursados e contratados de 2023 a 2023

Como podemos perceber, em todo esse período de arrocho neoliberal, os professores têm combatido em várias frentes: uma delas é o uso não-pedagógico do celular em sala de aula. O celular trouxe desafios extras para nossa categoria. Invadiu e precarizou a sala de aula e as escolas em geral. E a Lei de combate ao celular é uma alternativa, talvez tardia, de tentar reverter a lógica destrutiva e viciante deste aparelho do “multitarefismo” neoliberal.

Com apenas uma câmera e alguns clics, um estudante podia (ou ainda pode?) expor ao mundo este ambiente (precarizado) da sala de aula. Com o celular, o professor passou de vítima a culpado. A estudantada pôde ser usada pelos adeptos do “Escola sem Partido”. O celular, que pode ser um instrumento maravilhoso se (fosse) bem utilizado, viciou a maior parte dos estudantes e trouxe para dentro da sala de aula muito ódio, preconceitos, frustrações e amarguras, através de um turbilhão orquestrado de mentiras e propagandas políticas travestidas de notícias (as chamadas fake news), chamando os estudantes a se alinharem a um discurso muitas vezes de teor fascista que entra em choque com o conhecimento científico que o corpo docente tem por obrigação discutir, desvelar e revelar.

Como vimos são muitos os problemas que se abatem sobre as escolas públicas do Estado, vista como depósito de crianças e adolescentes: a retirada de benefícios dos profissionais de educação (proibição de merendar na escola e lanches minguados), que se dá em troca de R$ 250,00 de auxílio alimentação/mensal, ingerência interna via provas externas rodadas não se sabe por quem, empresas terceirizadas e parcerias escusas que atrapalham o dia a dia do ensino nas escolas, péssimas condições de trabalho (em várias escolas há falta de climatização das salas de aula), a 'desconteudização' curricular, a repetição do mesmo conteúdo em várias disciplinas diferentes (exemplo: 'fordismo, taylorismo e toyotismo' é trabalhado em pelos menos três disciplinas: geografia, sociologia e história), o assédio moral e a perseguição política de professores cujas vozes são dissonantes, sem falar dos professores que estão fora do quadro de horário (mostrando o quanto foi insuficiente a melhoria do NEM II) ou que estão com um montão de disciplinas ou atuando em várias escolas, a não utilização das verbas do Fundeb e dos “royalties” do petróleo para a valorização dos profissionais da educação, a destruição de nosso plano de carreira, o não cumprimento do piso nacional dos professores (que está virando uma espécie de teto salarial e não um salário mínimo inicial como deveria ser por princípio - pois piso é piso e não teto, como o governador e a Seeduc-RJ estão fazendo), sem falar na contratação de aplicativos online desnecessários e que usurpam os recursos que deveriam ser aplicados no real interesse da educação pública e da população brasileira.

A alienação do trabalho, comum no processo de industrialização capitalista que começou com a transformação do artesanato em manufatura e desta em indústria fabril, se dá agora entre nós. A transformação da educação em uma atividade industrial está ocorrendo devido uma imposição política: a política neoliberal. Tem levado à pulverização da categoria em vários regimes de trabalho: 18h, 22h, 30h, 40h, com ou sem GLP, contratados e “uberizados”, desviados ou não desviados de função, com uma, duas ou mais escolas. A retirada cada vez maior da autonomia profissional em cada minúcia que compõem o nosso trabalho cotidiano: planejamento, preparação das aulas, preparação do material didático, a aula presencial, às vezes também a aula via aplicativos, a chamada, o diário de classe, o processo avaliativo, o processo de recuperação e o conselho de classe, desconstrói e impede o desenvolvimento do professor e da educação formal brasileira. Em tudo a Seeduc-Rj está a interferir e a alterar, se apossando daquilo que não deveria ter ingerência. Tudo por conta dos “numerozinhos da produtividade” e do lucro capitalista, como diria Eduardo Galeano em “O veneno está na mesa”, do documentarista Sílvio Tendler.

E o capitalismo segue a sua sina de Rei Midas: “Onde põe as mãos, tudo vira ouro”. Tudo vira ouro para os ricos, mas também maldição como dá a entender o mito de Midas! Já para os pobres, como cantava Rita Lee, o capitalismo lança ao mundo sua escatologia: onde põe as garras, “tudo vira bosta!”.

Renato Fialho - Cientista social e professor