textos de sociologia

Militarizando a América Latina

Extraído de UOL.

06/09/2009 | Noam Chomsky

Os Estados Unidos foram estabelecidos como um "império infante", nas palavras de George Washington. A conquista do território nacional foi uma grande empreitada imperial. Desde os primeiros tempos, o controle sobre o hemisfério era um objetivo crucial.

A América Latina manteve sua primazia no planejamento dos EUA para o mundo. Se os Estados Unidos não conseguem controlar a América Latina, não podem esperar "estabelecer uma ordem bem sucedida em outros lugares do mundo", observou o Conselho de Segurança Nacional do presidente Richard M. Nixon em 1971 quando Washington estava considerando a derrubada do governo de Salvador Allende no Chile.

Recentemente o problema do hemisfério se intensificou. A América do Sul está mais próxima da integração, um pré-requisito para a independência; ampliou os laços internacionais; e está lidando com suas desordens internas - acima de tudo, com o poder tradicional de uma minoria europeizada sobre um mar de miséria e sofrimento.

O problema chegou ao ápice há um ano na Bolívia, o país mais pobre da América do Sul, onde, em 2005, a maioria indígena elegeu um presidente que pertencia à sua própria classe, Evo Morales.

Em agosto de 2008, depois da vitória de Morales num referendo de revogação, a oposição das elites apoiadas pelos EUA se tornou violenta, levando a um massacre de até 30 aliados do governo.

Em resposta, a recém-formada União das Nações Sul-Americanas (Unasul) convocou uma reunião de cúpula. Os participantes - todos os países da América do Sul - declararam "seu apoio firme e total ao governo constitucional do presidente Evo Morales, cujo mandato foi ratificado por uma grande maioria."

"Pela primeira vez na história da América do Sul, os países de nossa região estão decidindo como resolver nossos problemas sem a presença dos Estados Unidos", observou Morales.

Outra manifestação: o presidente do Equador Rafael Correa prometeu acabar com o uso da base militar de Manta por Washington, a última base desse tipo aberta para os Estados Unidos na América do Sul.

Em julho, os EUA e a Colômbia fecharam um acordo secreto para permitir que os Estados Unidos usassem sete bases militares na Colômbia.

O propósito oficial é combater o tráfico de narcóticos e o terrorismo, "mas altos militares colombianos e funcionários civis familiares com as negociações" disseram à Associated Press "que a ideia é transformar a Colômbia num centro regional para as operações do Pentágono."

O acordo fornece à Colômbia o acesso privilegiado a suprimentos militares dos EUA, de acordo com relatos. A Colômbia já se tornou o principal recebedor de ajuda militar dos EUA (fora Israel-Egito, uma categoria à parte).

A Colômbia teve até agora as piores estatísticas de direitos humanos do hemisfério desde as guerras centro-americanas dos anos 80. A relação entre a ajuda dos EUA e as violações aos direitos humanos é há muito tempo destacada pelos estudiosos.

A AP também citou um documento de abril de 2009 do Comando Mobilidade Aérea dos EUA, que propõe que a base de Palanquero na Colômbia possa se tornar um "local de segurança cooperativa."

De Palanquero, "quase metade do continente pode ser coberto por um C-17 (transporte militar) sem necessidade de reabastecimento", diz o documento. Isso pode fazer parte de "uma estratégia global em andamento" que "ajuda a atingir a estratégia de engajamento regional e auxilia na mobilidade da rota até a África".

Em 28 de agosto, a Unasul se reuniu em Bariloche, Argentina para avaliar as bases militares norte-americanas na Colômbia.

Depois de intenso debate, a declaração final salientou que a América do Sul precisa ser mantida como uma "terra da paz", e as forças militares estrangeiras não devem ameaçar a soberania ou integridade de nenhuma nação da região. E instruiu o Conselho de Defesa Sul-Americano para investigar o documento do Comando de Mobilidade Aérea.

O propósito oficial das bases não escapou das críticas. Morales disse que presenciou soldados norte-americanos acompanhando soldados bolivianos que atiraram em integrantes do sindicato de plantadores de coca do país.

"Então agora nós somos narcoterroristas", continuou ele. "Quando eles não podem nos chamar mais de comunistas, nos chamam de subversivos, e depois de traficantes, e desde os ataques de 11 de setembro, de terroristas". Ele alertou para o fato de que "a história da América Latina se repete."

A responsabilidade final pela violência na América Latina está com os consumidores norte-americanos de drogas ilegais, disse Morales: "Se a Unasul enviar tropas para os Estados Unidos para controlar o consumo, será que eles irão aceitar? Impossível."

Que a justificativa dos EUA para seus programas antidrogas no estrangeiro seja até mesmo vista como digna de discussão é mais um exemplo da profundidade da mentalidade imperial.

Em fevereiro passado, a Comissão Latino-Americana para Drogas e Democracia divulgou sua análise da "guerra contra as drogas" dos EUA nas décadas passadas.

A comissão, liderada pelos ex-presidentes latino-americanos Fernando Henrique Cardoso (Brasil), Ernesto Zedillo (México) e Cesar Gaviria (Colômbia), concluiu que a guerra antidrogas foi um completo fracasso e clamou por uma mudança drástica de política, para longe das medidas coercitivas na América do Sul e no estrangeiro, e em direção a medidas muito menos caras e mais eficientes - a prevenção e o tratamento.

O relatório da comissão, assim como estudos antigos e os dados históricos, não teve um impacto detectável. A falta de resposta reforça a conclusão natural de que a "guerra contra as drogas" - como a "guerra contra o crime" e a "guerra contra o terror" - é empreendida por outras razões que não os objetivos anunciados, o que é revelado pelas conseqüências.

Durante a última década, os Estados Unidos vêm aumentando a ajuda militar e o treinamento de oficiais latino-americanos em táticas leves de infantaria para combater um "populismo radical" - um conceito que, no contexto latino-americano, provoca arrepios na espinha.

O treinamento militar está sendo transferido do Departamento de Estado para o Pentágono, eliminando regras quanto aos direitos humanos e a democracia antigamente sob a supervisão do Congresso, que, embora fracas, pelo menos impediam algumas das piores violações.

A U.S. Fourth Fleet, dissolvida em 1950, foi reativada em 2008, logo depois da invasão do Equador pela Colômbia, com responsabilidade sobre o Caribe, América Central e do Sul, e as águas circundantes.

Suas "várias operações (?) incluem combater o tráfico ilícito, Theater Security Cooperation, interação entre os poderes militares e treinamento bilateral e multinacional", dizia o anúncio oficial.

A militarização da América do Sul se alinha com objetivos muito mais amplos. No Iraque, a informação é praticamente nula sobre o destino das imensas bases militares norte-americanas que existem no país, então elas presumivelmente continuam lá para o planejamento estratégico. O custo da imensa embaixada do tamanho de uma cidade dentro de Bagdá deve subir para US$ 1,8 bilhão por ano, a partir de estimados US$ 1,5 bilhão.

O governo Obama também está construindo megaembaixadas no Paquistão e no Afeganistão.

Os Estados Unidos e o Reino Unido estão pedindo que a base militar norte-americana em Diego Garcia fique de fora da planejada zona livre de armas nucleares africana - assim como as bases dos EUA estão fora dos limites de zonas similares no Pacífico.

Em resumo, os movimentos em direção a "um mundo de paz" não estão dentro da "mudança em que você pode acreditar", citando o slogan de campanha de Obama.

Tradução: Eloise De Vylder
Fonte: UOL/The New York Times/Coluna de Noam chomsky