Artigo nº 010 - crônica social
preferiria dizer 'já perdi'... (2)
Outros sons se assenhoreavam do recinto das maiorias silenciosas, provocando uma sonolência coletiva e hipnótica a transformar-se em sonhos vagos, futuristas e egocêntricos. Eram gritos alucinantes, advindos de ambulantes e profetas, que pareciam em disputa, mas somavam esforços contra o apito lúcido locomotivo e seu difícil intento de despertar a massa adormecida. A cada curva, um sacolejar inevitável arranhava uma a uma as chupetas de mão, gestando uma música ébria de melodia pobre a difundir-se paulatinamente qual ganido de cachorro abandonado. Os mercadores, cada um com seu produto, material ou ideal, tratavam de efetuar suas vendas. O mercado florescia numa ladainha muito bem integrada e de aparência um tanto quanto livre. Dependendo do tipo de produto que se estava a vender, tornava-se acirrada a concorrência entre o tal ambulante e o pastor das ovelhas malhadas. É o caso do vendedor de cerveja. Cerveja ou sangue de Jesus? Fé de menos ou fede mais?
Ao mesmo tempo, entre um cochilo e outro, alguns fiéis, espremidos pelos bancos, gaguejavam o cântico da hora, sem sequer entender de que maneira passavam de um hino a outro, numa espécie de semi-cantares... num pout-pourri de louvores insanos entrecortados.
A luta entre a máquina posta em linha e lotada e o cotidiano maquinado, é incompreendida por todos, como também o é a luta de classes. No entanto, o trem a todos empurra para seus lares para que descansem, enquanto os andróides repetidores de vazia e tortuosa fraseologia investem no frear das mentes exauridas, como a querer sugar com canudinho o resto daquele suco de gente, embora já anêmico e indeglutível.
Em instantes como esses percebe-se com extrema facilidade o preciso sentido do cogito cartesiano. “Penso, logo existo”, sentenciou René Descartes em resposta aos proibitivos tempos feudais, onde prevalecia a escolástica, os ditos velhos textos sagrados e a criminalização do livre-pensar.
É chegada a hora de acertar as contas. Que a Babel nossa de cada dia renda a sua homenagem ao seu deus único, este sim verdadeiro: o deus mercado.
Contudo, em meio a cantilena metafísica e burlesca, dois rapazes do curso de física da UERJ, como que ouvindo aos repetidos apelos do altivo trem exausto e pungente, buscavam entabular discussões profanamente científicas.
Mas, para mim, a viagem foi conclusiva. O trem chegou à Estação de Juscelino, Mesquita e, como sempre faz, abriu as portas... E eu, decodificando a mensagem do amigo trem, nem ao menos pestanejei: saltei para a liberdade!
Renato Fialho Jr. (JAN/2010)