Artigo nº 009 - crônica social
preferiria dizer 'já perdi'... (1)
“Que trem é esse, uai?”, perguntei surpreso. Bem! Não sou mineiro, apenas estava ali, em plena gare da Central do Brasil, Rio de Janeiro. Havia adentrado a composição minutos antes do fechar deslizante das portas férreas. O trem partira então rumo a Japeri. Lembrei da vetusta brincadeira dos tempos de faculdade, e o quanto gostaria de poder repeti-la naquele instante. A pilhéria se punha inevitável toda vez que perdíamos o trem com destino a Japeri: “Lá se vai o Já-perdi!”, dizia um de nós. Contudo, não era possível repeti-la dessa vez.
Minutos antes, havia já desconfiado que talvez tivesse sido vítima de uma trampa. Ou caído numa ambulante gaiola de loucos quando, na tentativa de iniciar agradável leitura, fui forçado a escutar repetidas vezes tão sonora frase exclamativa:
- “Na paz do senhor!”, uma, duas, três, quatro... sei lá quantas vezes. Como numa éspécie de senha, um a um, eles iam chegando.
Como há muito não andava por tais trilhos suburbanos, se quer podia imaginar tamanho descarrilar do proceder: acabava de entrar de gaiato no tão falado “vagão dos crentes”.
Hora do ‘rush’: o trem ‘tava lotado. Abafado e próximo ao meu cangote, um desgraçado, crente que estava abafando, se engraçou a berrar, de graça e num tom que se fazia crer embuído de divina graça, coisas e mais coisas ditas sagradas.
O vagão trazia um gado cansado, que ali mesmo era marcado a ferro e fogo e preparado para o abate dos pensamentos vagos e libertos. A técnica consiste em por a manada nos trilhos, chacoalhá-la em meio a devaneios e dormentes, num nana-neném de fechar as portas da consciência. Cumpria ainda a função de amaciar a carne extenuada da labuta, adormecida pelo intermitente mantra do café-com-pão, café-com-pão. Um ar desumano contaminava o ambiente no exato momento em que se punha o sol. Os dois ambientes, o interno e o externo, exalavam olores fétidos provindos ora do hálito embevecido do atemorizante orador ora do bafo da locomotiva que contaminava tão rarefeito ar a cada freada maquinal. Era uma mistureba indeglutível: as palavras, envelhecidas nos tonéis da tradição, completadas por cânticos sórdidos, serviam de batentes para uma manada extenuada por mais uma jornada opressiva de trabalho, massa indiferente aos isolados gritos de indignação da tarimbada locomotiva, cujo apito frenético entrecortava os espaços até invadir os vagões em humanizante protesto.
(continua)
Renato Fialho Jr. (JAN/2010)