Artigo nº 002 - teórico

Escola pública e ensino público de qualidade versus o discurso totalitarista da "qualidade total"

Vivemos em um mundo onde a visão geral (a visão que os cientistas costumam chamar de senso comum) é, até aqui, fortemente mercadológica e individualista. E até mesmo no meio universitário, tal visão, tacanha, adquire forte influência através do “relativismo filosófico” e do “relativismo cultural”, de matiz antropológico. É o dito “vale tudo” – e muito superior ao que poderia prever o velho Tim Maia! Ingênuo, o cantor e compositor não haveria de pensar em burlar uma lei natural e assim sendo sentenciava: “só não vale dançar homem com homem, nem mulher com mulher”.

Neste instante, em que ouvimos gritos de “qualidade total” na educação pública, o que vemos é uma demasiada preocupação com a quantidade total. Sim: de projetos, de notas, de dinheiros. Ou seja, uma preocupação obsessiva com as notas obtidas por nossos alunos: elas devem ser altas ou suficientes para que impeçam a reprovação - apregoam os gurus da pedagogia neoliberal e seus pseudo-professores (técnicos da educação como preferem que seja). Se assim não for, o governo do Estado ou a União não poderão rolar suas dívidas junto aos credores internacionais! O Banco Mundial espolia os povos e degrada suas condições sociais de sobrevivência, logo, é preciso maquiar a cotidiana construção desta realidade, desvinculando-as de seus empréstimos a juros extorsivos. Como é voz corrente no IBGE, "é preciso torturar os dados até que eles confessem o que precisamos ouvir”. Mas, “a tortura aos dados pode ser evitada, se formos capazes de corromper os dados em seu nascedouro”, ensinou o BM com sua visão pragmática. Está re-criado assim um mundo - “faz de conta” e alienante - onde os empréstimos bancários são transformados numa espécie de pseudo-filantropia social.

Quanto à qualidade da educação no Brasil, investiguemos: como é possível haver qualidade em educação se a ciência vem sendo condenada por uma política educacional equivocada que estimula e valoriza a ignorância, a religião, a pseudociência ou mesmo a anticiência, como costumava dizer o cientista norte-americano Carl Sagan? E quando valoriza a ciência a faz segundo uma ótica meramente técnica, como se a ciência se reduzisse a isso! Mas voltando a película só um pouco, vivemos num tempo de desconstrução que vem abrindo caminho para a construção de uma espécie de escolástica pós-moderna! Sim. Agora começa a fazer sentido chamar o outrora “Ensino Científico” de “Ensino Médio”, pois que este ensino é cada dia mais medieval! Francamente, se não desejamos eternizar a nossa situação de colônia ou de “império colonial”, parafraseando Chico Buarque e Ruy Guerra, se a retórica desenvolvimentista do presidente Lula (o PAC) não é mera borbulha neoliberal travestida de populista (como os fatos demonstram), deveríamos estar caminhando no sentido oposto, ou seja, na construção de um verdadeiro “Ensino Científico”: gratuito, popular, universal e onilateral.

O blá-blá-blá predominante é o da qualidade total! Mas, como? se prevalece o arrocho salarial e o salário inicial de um professor na Rede Estadual do Rio de Janeiro é praticamente igual ao de um gari? Ninguém fica (ou pretende ficar) no Estado por muito tempo. O professor I já entra no Estado pensando em deixá-lo e, como recebe muito pouco, acaba muitas vezes forçado a encarar uma(s) GLP(s) ou vários empregos, não havendo, assim, a tão necessária dedicação exclusiva de 20h. Desta feita, as faltas acabam acontecendo haja vista a exploração e o cansaço a que estamos submetidos. Há vários professores deprimidos ou pertos disso: afinal de contas, estamos diante de um quadro deprimente! Quanto aos professores do fundamental, frente à falência da família burguesa clássica, encontram-se na condição de acumular as funções de pai e mãe, além da de professor de português, matemática etc.. Não seria isso assédio moral?

Aliás, para que valorizar a “coisa pública”? A ordem dos senhores de Davos é desvalorizar o público, desviar recursos públicos para a iniciativa privada via Organizações Não-Governamentais e PPPs (Parcerias público-privadas), sempre em prol das privadas – e sem a preocupação sequer de dar a descarga! Qualidade total? Só se for em prol do capital! Cada vez mais livre para terceirizar os serviços da Escola! Aliás, é “contraproducente” fazer concursos agora, sobretudo para o pessoal do apoio, cada vez mais empobrecidos e humilhados! Se houver concursos não será dada oportunidade ao lucro! Neste instante, começam as privatizações das cozinhas escolares ou da merenda, que o governo de Sérgio Cabral quer introduzida no formato de quentinhas. Mas os professores públicos também estão sendo extintos. A carência de professores na rede pública do país já chega a 246 mil! Virão depois as cooperativas?

Qualidade total? Como se a “aprovação automática” no ensino fundamental traz para o ensino secundarista, em alguns municípios, alunos diplomados em analfabetismo (o analfabetismo funcional, segundo o IBGE, ronda os 50%)? Como é possível que o professor mantenha algum “élan” diante de todas essas circunstâncias? Restam assim os apelos escolásticos do magistério enquanto vocação ou dom divino, uma espécie de divina comédia frente às necessidades imperiosas de sobreviver neste “vale de lágrimas” (licença Marx!) que se vai construindo sem parar! Como se isso fosse pouco, o individualismo burguês, expresso na construção do discurso da diferença e das minorias, concede cada vez mais livre-arbítrio aos alunos: “estudo se eu quiser”, dizem muitos deles, “abaixo o uniforme e a supremacia do coletivo sobre o indivíduo!”, gritam outros, “ouço meu mp3 com o professor em sala só pra me afirmar em cima do ‘otário’”, “converso durante a explicação, mesmo, não tô nem aí”, “lancho no meio da aula e daí, a vida é minha”, “atendo celular, mesmo, pra que ser educado!”, “uso piercing por que almejo ser diferente”. Este tipo de comportamento tão nefasto a um convívio social coletivista foi ironizado pelo grupo de rock Ultraje a Rigor na década de 80, quando cantavam: “eu me amo, eu me amo, não posso mais viver sem mim”.

Qualidade total? Como se a televisão trabalha 24h imbecilizando (ou tentando imbecilizar) a todos com seus programas repletos de conteúdos irracionais, que valorizam o instinto (animalesco e agressivo à razão), o individualismo e a violência mais banal? Como ter qualidade se nos despejam a todo instante a proposta irracionalizante, animalizante, coisificante e prostituída do funk? Como instituir a inteligência científica num ambiente onde grassa o fanatismo religioso e a disputa entre os vários credos? Como ter qualidade total se a instituição família (parte outrora fundamental da educação burguesa) se desfaz econômica, moral, constante e inexoravelmente? Não é necessário muito esforço intelectual para percebermos que a família está cada vez mais ausente, por precisar cada vez mais trabalhar, trabalhar e trabalhar “pelo pão nosso de cada dia” ou para tentar recuperar o título de “nobreza” e assim tentar refundar a passada e falida família burguesa. Parece que os senhores do capital estão decididos a refundar, sobretudo no Brasil, uma sociedade como a falida Roma de Calígula – um bordel ou prostíbulo onde não há regras a não ser a da imposição pelo dinheiro e o poder das armas. É a velha tática denunciada por Cazuza e Frejat, onde “transformam um país inteiro num puteiro, por que assim se ganha mais dinheiro”.

Vale então uma nova saraivada de perguntas: será que tudo que foi dito acima em nada interfere na destruição da capacidade de nossos alunos de raciocinar cientificamente ou até basicamente (ver a dificuldade geral que o corpo discente tem em matemática ou o pouco interesse pelo conhecimento científico, por exemplo)? Ou será que há quem realmente acredite que são os professores os culpados por todo esse descaso que vigora na educação e em nosso país? Quando muito estaríamos cansando diante de tantos anos de descaso e abandono político! Será que a corrupção na educação estadual não se aprofundou com o desenrolar do programa NOVA ESCOLA, onde os professores, em troca de conceder boas notas aos alunos, podiam obter algumas parcas notas de R$ 50 todo mês em seus bolsos? O que será agora com o tal PDE, cuja retórica é a “qualidade”, que se pretende obter via envolvimento (parceria), gestão (controle por terceiros) e projeto (uma espécie de festival para ONGs e empresas privadas tão, “tipo assim”, usual)?

É hora de reflexão! Não devemos nos deixar levar pelo discurso da “qualidade total”, pois o que está a ser fabricado é a QUALIDADE TOTALITÁRIA! Seu fundamento: a quantidade estatística transformada em quantidade embolsada de dinheiro por uma, desculpe o “trocadalho”, minoria! Enquanto isso, no mundo real, abundam alunos cada vez mais despreparados cientifica e profissionalmente, mais ignorantes da realidade que se globaliza e os englobaliza, num verdadeiro, alienante, público e contundente creeeeeeeeu!!!. Está garantida assim uma sociedade cada vez mais apta à violência e à alienação, pronta para servir aos anseios fétidos do capital! Façam coro com a Coca-Cola e gritem: viva a diferença! Ajoelhem-se e digam baixinho e humildemente: amém! Afinal, como diria Gonzaguinha em sua música Comportamento Geral: você merece!

Renato Fialho Jr.