Artigo nº 008 - teórico

Outras palavras


20/06/12 - Após tantos anos de políticas neoliberais, muitas coisas mudaram... e para pior! - assim o é pelo menos para os que se veem obrigados a ganhar a vida vendendo sua força de trabalho (o proletário assalariado). E o funcionário público, que, desde a década de 80 foi estigmatizado com a pecha de 'marajá', anda agora a catar as latinhas que sobraram do banquete da elite empresarial - que não pára de enriquecer às custas dos cortes que vão sendo efetuados contra o funcionalismo e o cidadão em geral. À exceção de uma casta de políticos, juízes, executivos e militares, todo o funcionalismo se proletarizou e perdeu direitos.

E, observando o caso particular da educação em nosso Estado (RJ), a situação é ainda mais humilhante... e cabe a questão: onde foi parar a autonomia e a liberdade dos profissionais da educação pública do Estado do Rio de Janeiro, cujo salário inicial atual beira um salário mínimo e meio?

A cada medida ou decreto do governo, vai-se um direito da educação e, por osmose, vai-se direitos constitucionais duramente conquistados pelo povo, que assim vai se empobrecendo material e espiritualmente... O conexão-professor usurpou a relação direta entre o professor e a escola. O conexão-aluno impede todos os alunos de ter acesso ao boletim de papel ou a antiga 'carteirinha de estudante', agora virtualizados. As direções de colégio vão sendo enxovalhadas, oprimidas pelas exonerações e transformadas em gerentes (gestores) da 'toda-poderosa' Secretaria Estadual de Educação. A própria coordenadoria foi rebaixada à função fiscalizadora, uma espécie de 'inspetoria de alunos, funcionários e professores'. E a educação é entregue a economistas e afins, ao invés de ser entregue a quem realmente entende do assunto: os professores.

A visão tecnicista em educação tenta roubar a capacidade crítica dos alunos, formando uma mão-de-obra apta para o mercado e preparada para os novos tempos de colonialismo mercantil e belicista (da OMC, da OTAN, do FMI, do BIRD etc.). Sem concurso para funcionário de apoio desde a década de 90, pouco a pouco as escolas estão perdendo a infraestrutura que lhe dá suporte, o que desorganiza, e essa é a finalidade do governo, o cotidiano escolar. A maioria destes funcionários de apoio se  aposentou, abandonou o emprego, está readaptada ou morreu de tanto trabalhar. E com isso se vão deteriorando as condições de trabalho e estudo nas escolas: laboratórios de informática e bibliotecas fechados ou semiabertos, inspeção, secretaria, limpeza e copa com contingente insuficiente. Fora isso, ocorre a superexploração, pelas empresas de serviços, dos funcionários terceirizados, uma espécie de reedição da condição escrava (sem direitos trabalhistas, salários abaixo do mínimo e polivalência de tarefas). Quanto aos salários dos profissionais da educação, são extremamente aviltantes e precários, mas, apesar disso, o governo entrou com uma ação no Supremo para acabar com a lei que instituiu os triênios, quinquênios e outros reajuste que levam em conta o tempo de serviço, apontando para mais arrocho e o massacre na aposentadoria. A meritocracia completa o quadro absurdo, ao buscar e estimular a competição e a desigualdade salarial entre as escolas e entre os profissionais da área.

Como é possível perceber, estamos a perder autonomia, que vem sendo transferida para a Seeduc-RJ que por sua vez a transfere para empresas e ONGs, como no caso do 'projeto autonomia', gerenciado pela Fundação Roberto Marinho - das Organizações Globo. O nome do projeto é um escárnio e tripudia de todo o funcionalismo!

Mas, tudo isso é acompanhado de todo um palavrório, ou seja, da introdução de um jargão técnico e burocrático-empresarial. E de certo modo as palavras vomitadas sobre nós denunciam as intenções de seus portadores, assim como a numerologia intrínseca à política neoliberal denuncia a concepção desumana e monetária dos que governam para as empresas.

Talvez fosse preciso lembrar de José Martí, que certa vez afirmou: 'A palavra não é para encobrir a verdade, mas para dizê-la'. E a verdade é coirmã da justiça. As palavras, quando empregadas erradamente, podem desmotivar, desencorajar, amedrontar, ofender, desunir. Ao expressarem verdades, elas motivam, encorajam, organizam o pensamento e unem as pessoas.

Mas esta contra-revolução neoliberal - de matiz pós-moderno -  das palavras e dos conceitos fora estabelecido ao mesmo tempo em que era cassada a nossa voz e imposto sem discussão, e com o apoio permanente da mídia, o tal consenso de Washington - e para Washington. Os nossos foros legítimos de discussão e cidadania foram enfraquecidos, esvaziados, silenciados ou abolidos pelos mais diversos mecanismos maquiavélicos (corrupção, ameaças, punições, torturas psicológicas, assédios morais).

Para tentar garantir o sucesso da iniciativa, o governo neoliberal de Sérgio Cabral tem como importante aliado a grande mídia fascista, que se cala frente aos acontecimentos que deveria denunciar, que distorce a realidade e a repete insistente e impunemente, mídia que tem por tarefa culpar os profissionais da educação e o setor público pela situação de destruição criativa e programada das escolas públicas do Estado do RJ. Trata-se de uma mídia religiosa, carola e fanática (o neoliberalismo é uma religião cujo Deus é o dinheiro), mídia essa absolutista e monopolizada, que massacra a massa com suas missivas eletrônicas cotidianas e incansáveis, numa missa maniqueísta (bem ou mal) e digitalizada (zerinho ou um)... Essa mesma mídia tem por finalidade formar o que eles chamam de 'consenso', 'opinião pública', 'comportamento de manada', cuja máxima se expressa na frase: 'a verdade está na palavra' e a palavra, religiosamente 'como o pão nosso de cada dia', está com a mídia.

Foi assim, gradualmente, que a fábula substituiu a realidade. E a realidade tornou-se monstruosa, como a hidra de várias cabeças da mitologia grega. E assim trabalha a mídia fabulosa e seus governos ilusionistas, recriando o mundo 'a sua imagem e semelhança'. E vemos o que vemos: uma utilização sofística da palavra! E que tal apreciarmos essa transformação da retórica?

Ao invés da palavra 'diretor', adotou-se a palavra 'gestor' - e o diretor passou à condição de gerente, e a direção de cada escola foi usurpada por Risolia e CIA.

Ao invés da palavra 'professor', adotou-se a palavra 'facilitador', onde passamos a facilitar a destruição de nossas condições de trabalho e de autonomia pedagógica.

Ao invés da palavra 'aluno', o governo orientou que se adotasse a palavra 'cliente', um claro sinalizador das pretensões do governo em transformar a escola pública e gratuita em escola privada e paga.

Ao invés da palavra 'concursado', adotou-se a palavra 'terceirizado'.

Ao invés da palavra 'função', adotou-se a palavra 'multifunção', desmontando a estrutura fordista em prol da visão toyotista que impõe e desenvolve o trabalhador faz-tudo.

Ao invés da palavra 'planejamento escolar', adotou-se a palavra 'plano de metas', onde o segundo se impõe sobre o primeiro.

Ao invés da palavra 'currículo', adotou-se a palavra adjetivada 'currículo-mínimo'.

Ao invés da palavra 'igualdade', adotou-se a palavra 'diferença', e nos dividiram.

Ao invés da pecha de 'pelego', adotou-se a pomposa palavra 'mérito', foi quando se passou a cumprir, item a item, a cartilha do patrão privatizador.

Ao invés da palavra 'salário', adotou-se a palavra 'bônus'.

Ao invés da palavra 'conhecimento', adotou-se a palavra 'sucesso'.

Ao invés da palavra 'crítica', que está na base do pensar científico, adotou-se a palavra 'consenso'.

Ao invés da palavra 'diálogo', que pressupõe interação, adotou-se a palavra 'decreto'.

Ao invés da palavra 'explicação', adotou-se a palavra composta 'auto-ajuda'.

Ao invés da palavra 'ser', adotou-se a palavra 'ter', e passamos a ter menos ou a simplesmente não ter.

Ao invés da palavra 'formação', optou-se pela palavra 'informação'.

Ao invés da palavra 'prova', adotou-se o acrônimo 'Saerj' - 'Saerjinho' para os íntimos. Aliás, ou o puxa-saco que inventou o nome da prova era analfabeto, não sabia escrever 'Serginho,' ou o governador é, de fato, muito narciso!

Ao invés da palavra 'autonomia', adotou-se o termo 'projeto autonomia'.

Ao invés da palavra 'estudo', adotou-se a palavra 'projeto'.

Ao invés da palavra 'curiosidade', adotou-se o acrônimo 'BBB', e instalaram câmeras nas escolas.

Ao invés do termo 'busca de conhecimentos', adotou-se o termo 'caça de talentos'.

Ao invés da palavra 'razão', optou-se pela palavra 'emoção'.

Ao invés da palavra 'saber', adotou-se a palavra 'média'. E, para ser coerente, ao invés do termo 'ensino científico', adotou-se o termo 'ensino médio'.

Ao invés da palavra 'ciência', adotou-se a palavra 'cultura'.

Ao invés da palavra 'método', adotou-se a palavra 'linguagem'.

Ao invés da palavra 'verdade', adotou-se a palavra 'conveniência'.

Ao invés da palavra 'liberdade', adotou-se a palavra 'medo'.

Ao invés da palavra 'responsabilidade', optou-se pela palavra 'otimização'.

Ao invés da palavra 'união', adotou-se a palavra 'conexão'.

Ao invés da palavra 'emprego', adotou-se a palavra 'precarização'.

Ao invés da palavra 'público', adotou-se a palavra 'privado'.

Ao invés da palavra 'democracia', adotou-se a palavra 'empresa'.

Ao invés da palavra 'solidariedade', adotou-se a palavra 'parceria'.

Ao invés da palavra 'educação', vai se adotando a palavra 'lucro'.

E qual será a próxima palavra? Por quem será dita? Por quem será vociferada? Por eles, novamente? Ou pelos professores? Pelos alunos? Pelos funcionários de apoio? Pelos pais de aluno? Pela maioria da comunidade escolar?

E que tal a palavra 'CHEGA'?

Renato Fialho Jr. (artigo revisto e alterado em 26/07/12)