Artigo nº 027 - teórico

Como a educação pública está sendo usurpada dos pobres

09/04/2021 - Estão a usurpar, da maioria absoluta do povo brasileiro, o direito constitucional e humano à escola e à educação pública: universal, laica, gratuita e de qualidade! É que os velhos “tubarões” da educação, os que veem a educação como um mero negócio lucrativo, estão se assenhoreando de tudo o que diz respeito ao ensino básico e superior (planejamentos de curso, planos de aula, apostilas, aulas, vídeo-aulas, diários de classe, recursos didáticos, métodos pedagógicos, interações, exercícios de fixação, testes, provas, cadastro escolar, etc.) para usufruto egoísta (capitalista). E, de bandeja, estão obtendo maior poder político (controle social e ideológico) sobre a população. Em que pese toda a lenga-lenga do projeto Escola sem Partido, que andou esperneando e gritando por aí que os professores estavam promovendo uma espécie de "doutrinação ideológica", o que vemos parece indicar exatamente o oposto! Senão, vejamos!

Esse processo não se iniciou hoje. Ele data de muitos anos. Na verdade começou lá no período ditatorial e seguiu sofrendo modificações ano a ano no período democrático neoliberal. Primeiro sucateou-se o ambiente escolar, a formação e a condição salarial do professor. Na sequência, a lógica adotada culmina no que vemos hoje:a lógica de alienar, separar, afastar e mesmo retirar fisicamente os professores e os alunos de dentro das escolas (enquanto instituições com endereços físicos: situadas em ruas, praças ou avenidas) e aliená-los ou retirá-los também da sala de aula enquanto espaço de interação social e de encontro humanizador. Não por acaso várias escolas foram fechadas e seus terrenos cedidos ou vendidos para outras finalidades nada educativas. Há toda uma pressão para que se instale definitivamente o econômico (pois diminui gastos, transferindo-os para outrem) Ensino Remoto, às vezes chamado também de Ensino a Distância (EaD). Há cursos à distância (cursos de extensão, por exemplo) que chegam a ser feitos com centenas ou até mil inscritos utlizando a mão de obra de um professor ou de um punhado deles. Nesses cursos, toda a comunicação se dá virtualmente e os alunos são postos numa condição de massa.

Junto à essa "nova" modalidade de ensino massificante e separatista, há outro objetivo: o de manter os alunos e professores o mais afastados possíveis entre si, pois os últimos seriam, segundo a "nova" forma de ver, seres bem "perigosos" (se não forem transformados em técnicos ou operários = operadores de máquinas). O afastamento entre professores e estudantes na verdade impede que sejam criados laços de fraternidade, de carinho e de respeito-mútuo (emotividade), além de dificultar a escolha individual quanto às melhores práticas e teorias científicas, sem falar no estabelecimento de referências teóricas, políticas e científicas. Ou seja: tira o protagonismo da própria escola, dos professores e dos alunos, abrindo espaço para a transferência desse protagonismo para terceiros (ONG's ligadas às empresas privadas e aplicativos de serviços educacionais).

Afastar o aluno do professor para que a intermediação entre eles possa se dar através de aplicativos que são propriedades privadas (de empresas capitalistas) cujo único compromisso com o aluno é o de torna-lo cliente (consumidor de produtos "educacionais" cada vez mais superficiais e de qualidade duvidosa - para dizer o mínimo). O único compromisso com os mestres é o de torná-los proletários mal assalariados, produtores de mais-valia, tirando deles o "status" de servidores públicos (passo que o sistema pretende dar mais à frente).

Afastar o professor (e mesmo o aluno – pois muitas de nossas aulas são propositivas, onde os estudantes podem sugerir temas curriculares) do controle dos conteúdos ministrados ou até mesmo eliminar o conceito e a prática “conteudista” (a palavra conteúdo virou um palavrão no jargão do empresariado, algo a ser defenestrado) para assim gerar um vazio científico muito interessante para aqueles que querem desenvolver uma educação voltada quase que exclusivamente à doutrinação e ao método da autoridade que servia de fundamento à velha escolástica medieval, baseada no ensino dogmático, doutrinário, religioso e ideológico.

Outro objetivo tem sido o de afastar o professor da confecção ou da escolha de seu próprio material didático-pedagógico, através da entrega dessa confecção a um determinado grupo de profissionais ou “especialistas” (sem uma ampla discussão de base) para depois vir determinado de fora, como o faz ou tenta fazer algumas secretarias de educação através do tão questionado Applique-se (aplicativo de propriedade da suspeita IP.TV, a mesma que desenvolveu o aplicativo Mano – que veicula a TV Bolsonaro). Este Aplicativo disponibiliza uma série de apostilas pré-fabricadas e de uso quase obrigatório para os professores (já que uma espécie de novo SAERJ – prova externa – será aplicado pelas secretarias de educação tendo por base esse estranho material). Como os professores se encontram afastados também de seus diretores de escola (hoje transformados em gestores ou gerentes) e como todos estamos fragilizados neste período de pandemia, tendemos a nos deixar levar pelo que está previamente posto e decidido.

O afastamento dos professores em relação à própria correção das provas é outro sintoma da perda de autonomia do professorado, antes corretamente chamado de professor-regente! Já existem aplicativos privados destinados a esta tarefa de aplicação e correção automática de provas e avaliações: como o Google Formulário, Prova Fácil, Microsoft Forms. Antes que seja acusado de “professor antiquado”, contrário às tecnologias, gostaria de deixar claro que elas podem sim agilizar as tarefas e liberar professores e estudantes para a pesquisa e o aprofundamento do estudo científico. A grande questão não está na tecnologia em si, mas na manipulação, controle e apropriação desta tecnologia (assim como o de seus resultados finais) por grupos empresariais, que acabam concentrando e arquivando, para usos escusos e estranhos à educação, uma imensa quantidade de dados, antes sigilosos, de alunos, professores e até mesmo de pais de alunos.

Ainda quanto às avaliações, gostaria de contar aqui uma experiência que tive em 2015. Trabalhei em uma escola da Rede Estadual onde as notas eram quase todas definidas por avaliações estranhas à maioria das disciplinas (provas externas bimestrais de matemática e português e projetos escolares "interdiciplinares"), restando aos professores somente a definição de uma terceira avaliação de 3,0 pontos para complementar a média do bimestre. Foi quando vi pela primeira vez a separação do direito dos professores de avaliar e conceituar seus alunos. Tudo isso feito em nome de uma suposta e inovadora “pedagogia de projetos”, baseada não em conteúdo, mas no “desenvolvimento de habilidades e competências”, como apregoado no documento “Projeto de Vida: O Papel da Escola na Vida dos Jovens”, da Fundação Lehmann (ligada à cervejaria Ambev). Ou seja: a lógica do fazer e do sentir (as ditas habilidades) estava já a se sobrepor à lógica da teoria, da razão crítica e da valorização do bem-estar comum.

Mais que isso! Estava se usando já, a essa altura, um linguajar completamente neoliberal, onde o corpo discente deveria não só “aprender-fazendo”, mas aprender também a “trabalhar em equipe”, numa espécie de “pedagogia do jogar” ou “pedagogia das competências” – que seria muito mais adequado chamar de “pedagogia” (ou prática?) da competição!

Nesses anos de atuação como professor vi de tudo: gincanas competitivas, concursos de talentos (ou caça-talentos), desfile de beleza (com jurado, premiação e tudo), olimpíadas de matemática, projetos de empreendedorismo, palestra de como investir na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, sem falar nas provas externas: prova Brasil, SAERJ, “Saerjinhos” e outras tantas inutilidades, onde o que é cobrado na prova externa não tem a princípio nenhuma ligação com aquilo foi ensinado pelos professores no bimestre. Mas, com o tempo, pasmem, foi ocorrendo justamente o contrário: a maioria dos professores foi se tornando treinador de provas externas, que a rigor eram muito similares entre si (afinal as escolas passaram a ser comparadas e ranqueadas a partir desses malditos testes pensados pelo Banco Mundial).

Toda essa política competitiva transformou as escolas num grande “cassino”, impondo aos jovens uma visão (essa sim utópica – pois excludente e impossível para todos) de que a lógica da vida está na concorrência desenfreada, na meritocracia (sem mérito) do vencer a qualquer preço, custe o que custar! Na ideia mentirosa de que a vida seria um jogo!

Sobre tal assunto, o sociólogo Max Weber, um pessimista inveterado, foi ao menos sincero ao admitir que a "pedagogia do treinamento" (imposta pela racionalização da vida pelo capitalismo) embora não fosse a melhor forma de educação (pois que a melhor seria a "pedagogia do cultivo") "acabou por vencer", arrastando todos nós para o que ele chamou de "desencantamento do mundo". Esse mundo "racional" (segundo fins), burocraticamente controlado, tecnologizado e infeliz do “tempo é dinheiro” empurrou "os mais frágeis" à sua própria sorte (ao invés de ajudá-los). Na verdade, na prática, Weber termina por admitir a vitória "inexorável" do "darwinismo social".

Citemos então Weber:

“Uma relação social denomina-se luta quando as ações se orientam pelo propósito de impor a própria vontade contra a resistência do ou dos parceiros. Denominamos ‘pacíficos’ aqueles meios de luta que não consistem em violência física efetiva. A luta ‘pacífica’ é ‘concorrência’ quando se trata da pretensão formalmente pacífica de obter para si o poder de disposição sobre oportunidades desejadas também por outras pessoas. Há ‘concorrência regulada’, na medida em que esta, em seus fins e meios, se orienta por uma ordem. À luta (latente) pela existência, isto é, pelas possiblidades de viver ou de sobreviver, que se dá entre indivíduos ou tipos humanos sem que haja intenções dirigidas contra outras, denominamos ‘seleção’: ‘seleção social’ quando se trata das possibilidades que pessoas concretas têm na vida; ‘seleção biológica’ quando se trata das probabilidades de sobrevivência do patrimônio genético”. (WEBER; p.24)

Essa visão weberiana, além de ser uma distopia desencantada do mundo, abre precedentes para uma análise errada, que termina por naturalizar a barbárie imposta pelo sistema capitalista, que já na época de Weber começava a esboçar seu caráter moribundo.

Atualmente, cem anos depois do desaparecimento físico de Weber, o sistema capitalista está em estado de putrefação e já não esconde mais que pretende educar toda uma geração para uma sociedade que está a diminuir abruptamente os espaços de cidadania. A crise está a se intensificar! E os nossos jovens devem ser condicionados, sem pudor, à lógica da competição e do conflito (luta interpessoal) na medida em que escasseiam os direitos enquanto são ampliados os deveres, as obrigações e as formas de exploração mais vis e cruéis. Os novos “pedagogos” do neoliberalismo parecem acreditar que, para um mundo onde os empregos estão mais e mais rarefeitos ou precarizados, é preciso preparar as jovens gerações para o pior cenário, acostumando-as desde logo a viver em ambiente hostil e desumano (sem carinho, sem auxílio, sem ajuda, sem solidariedade, sem amizade, sem encontro, sem teoria, sem ciência, sem cultura, sem direitos e sem artes). Como os pedagogos liberais, os neoliberais pós-modernos querem que tudo de bom em educação seja jogado às calendas gregas em nome da atitude competitiva, da IV Revolução Industrial, da virtualidade negociada e intermediada por aplicativos privados e pouco confiáveis, onde reina a espionagem à distância e o monitoramento selvagem via celulares com GPS.

A fim de completar o cenário de pandemônio que está a abalar o direito da população a uma educação pública laica e democrática, seguimos pela senda obscura da depreciação da ciência (via negacionismo, propagação de fake News e memes viralizados) que é o ambiente proposto pelo protofascismo bolsonarista. Tudo isso em plena pandemia, que está a levar mais de 4 mil brasileiros por dia e que oficialmente já matou cerca de 355 mil pessoas (até 8 de abril de 2021, ou seja: 100 vezes mais que os mortos no atentado às torres gêmeas em 2001 nos Estados Unidos). E, com base nesse negacionismo, muitos defendem a pior das barbáries: o retorno às aulas presenciais! Mais uma vez estamos diante do darwinismo social, expresso na naturalização da morte. No dizer do intelectual camaronês Achile Mbembe, uma espécie de necropolítica (política da morte planejada) num ambiente já quase completamente sucateado pelo neoliberalismo alimentado por governos antipopulares, desumanos e antipatrióticos!

O ataque à ciência e à verdade começou nos anos 80 com a discussão sobre o pós-modernismo, que instalou no meio científico uma falsa impressão de que as novas tecnologias informacionais da IV Revolução Industrial poriam abaixo o mundo do trabalho e a importância do trabalhador no processo produtivo. É como se o materialismo dialético e a objetividade científica tivessem sido abatidos definitivamente pelo idealismo subjetivo, fazendo com que a vida fosse transformada num "instigante" jogo de linguagem, onde a filosofia subjetivista poderia enfim construir uma gigantesca Matrix nazifascista.

Mas talvez o ataque mais profundo ao magistério e à ciência esteja na implementação da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e na antecipação da Reforma do Ensino Médio aprovada em 2018 para entrar em vigor em 2022. E dentro desse processo, um golpe que se pretende fatal está sendo dado com o Programa Nacional do Livro e do Material Didático de 2021 (PNLD).

“Junto ao Novo Ensino Médio, diante de todas as transformações impostas ao currículo, até o dia 15 de março, professores de São Paulo e de todo o país tiveram que escolher novos livros didáticos que fazem parte do Edital PNLD 2021. Os livros trazem propostas de “Projetos Integradores” divididos por área do conhecimento e Projeto de Vida”. (FULFARO, 2021)

O mesmo busca promover um aligeiramento da educação básica, o que significa diluir e diminuir a carga horária das disciplinas. Ao mesmo tempo, tem como tema ou proposta central “o ‘projeto de vida’ do estudante e o desenvolvimento das ‘competências socioemocionais’ que, de acordo com os materiais oficiais, dizem respeito a traços de comportamento, sentimentos e pensamentos específicos, que devem ser desenvolvidos para alcançar objetivos individuais, tais como resiliência, autonomia, abertura ao novo, tolerância ao estresse, dentre outros” (FULFARO, 2021).

Todos os livros apresentados pelas editoras são divididos da mesma forma, ou seja, em três eixos: 1) Autoconhecimento: o encontro consigo; 2) Expansão e exploração: o encontro com o outro e; 3) Mundo e Planejamento: o encontro com o futuro e o nós. Neste ponto fica evidente a aplicação desavergonhada da pedagogia de treinamento que Weber identificou como “inexorável”, em que pese o fato de ser nitidamente inferior à pedagogia do cultivo.

O conceito embutido no Projeto de Vida é o de desenvolvimento da dita “inteligência emocional” (QE – Quoeficiente Emocional) em oposição ao conceito de “Inteligência Intelectual” (QI – Quoeficiente de Inteligência). Segundo os “especialistas” em “Inteligência Emocional”, “a interação entre inteligência e emoção reflete nas relações trabalhistas, nas competências, no desempenho, na liderança e no sucesso profissional” (SILVA, 2016).

A “Inteligência emocional” estaria ligada à capacidade de autocontrole pessoal do trabalhador para a vitória do patrão, como confessa o texto a seguir: “O líder que possui a inteligência emocional como competência não é um líder autoritário, mas um líder que desenvolve, que cativa, que eleva a autoestima da equipe e ameniza os impactos das pressões diárias. Como recompensa ou vantagem, esse gestor obtém subordinados mais felizes, comprometidos com o objetivo organizacional e produtivos” (SILVA, 2016). Atentem-se às palavras em negrito!

Aí está o fundamental: “ser cativador e não autoritário” (sic!), ser um “gestor” que lidera fazendo os seus “subordinados mais felizes” e “comprometidos” para assim atingir as metas produtivas estabelecidas pela empresa. Karl Marx chamaria toda essa “sopa de letrinhas” de: “forma de obtenção de mais-valia relativa” (MARX, 1985): que é quando o capitalista consegue promover, através do aperfeiçoamento dos métodos de trabalho ou via introdução de um novo maquinário uma maior INTENSIDADE e/ou PRODUTIVIDADE do trabalho, aumentando o grau de exploração da força de trabalho assalariada. Assim sendo: estamos diante do velho travestido de novo!

Este é o cenário de expropriação em que nos encontramos. Como diz FULFARO, trata-se “de um ataque ideológico ao processo formativo, uma vez que visa a preparação e resignação dos estudantes para o mercado de trabalho uberizado, sob demanda”. Neste contexto, toda a responsabilidade pelo sucesso ou pelo fracasso dos estudantes em meio à crise que se agrava é posta na conta dos próprios estudantes - que serão os futuros trabalhadores do país, os "micoempreendedores" (condicionados ao "Se vira nos 30"), treinados na prática do individualismo exacerbado e da meritocracia ilusória.

Para terminar, vale lembrar que a mídia há anos tem sido mestra em culpar os professores pelo fracasso dos alunos e, logo,do país. É certo que tudo isso será um fiasco e está combinado pelos agentes do sistema que a culpa por tudo que eles criaram deve ser colocada nas costas dos professores e das escolas públicas, por não promoverem "corretamente" essa "nova" modalidade de ensino ou qualquer outra baboseira "explicativa" do tipo!

Será que não chegou a hora da revolta?

Renato Fialho Jr.


Fontes consultadas:
FUNDAÇÃO LEHMANN. Projeto de Vida: O papel da escola na vida dos jovens. Julho de 2018.
FULFARO, Ana Carolina. PNLD 2021 e Projeto de Vida: formação para o individualismo e precarização da vida. Disponível em <https://www.esquerdadiario.com.br/PNLD-2021-e-Projeto-de-Vida-formacao-para-o-individualismo-e-precarizacao-da-vida em 15/03/21>. Acesso em: 08 Abril 2021.
MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Volume II. São Paulo, Difel, 1985.
SILVA, Eliane Wenderroschi da. Inteligência Emocional e sua importância nas lideranças e no trabalho. Niterói, LATEC/UFF, 2016.
WEBER. Max. Economia e Sociedade. Volume 1. Brasília, Editora UnB, 2012.