Artigo nº 004 - cartas e bate-papos

'Para um mundo sem estado', carta a Eduardo Marinho


07/01/16 - Prezado, Eduardo Marinho.
Pelo e-mail que me enviou, não sei bem se você leu atentamente todo o artigo ‘Como assim um mundo sem partido?’, que escrevi no último dia 2. Mas ainda assim vejamos.
Quem não quer um 'mundo sem estado'? Mas para aboli-lo teríamos antes de mais nada de eliminar as classes sociais e, assim, a luta de classes. O Estado não é uma estrutura acima da sociedade de classes, ela é uma construção histórica e social que surge por conta da divisão da sociedade em classes sociais. No caso da sociedade burguesa há o Estado burguês que administra e organiza a opressão da classe burguesa contra a classe oprimida (o proletariado). A sociedade de classes não sumirá num ato de mágica ou apenas segundo a nossa vontade, dependerá da nossa capacidade política, portanto organizativa, de eliminar a forma atual de apropriação dos meios de produção da própria vida material, ou seja: como organizar a queda do modo de produção capitalista.
Aqui encontramo-nos frente à velha divergência entre comunistas e anarquistas. Os comunistas defendem um Estado transitório autodestrutivo (a ‘ditadura’ do proletariado) enquanto não obtiver sucesso na tarefa de suprimir as classes sociais em todo mundo (ou em quase todo o mundo). Já os anarquistas pregam a supressão imediata do Estado como se fosse ele só causa e não consequência desta luta de classes.
Outra questão, que está implícita aí, é: qual seria a melhor estrutura organizativa capaz de dar cabo ao Estado burguês? Como transitar de uma formação social a outra? Através de um partido de esquerda? Através de um partido de quadros ou popular? Via uma frente de partidos anticapitalistas? Ou via um movimento (ou movimentos populares) que organize uma greve geral insurrecional? Talvez a resposta seja algo complexa, que NÃO prescinda de nenhuma das estruturas citadas acima ou que necessite de uma saída inusitada.
Daí que penso que não podemos ser ingênuos e abrirmos mãos do partido ou até mesmo do Estado, como ponte contra a eliminação das sociedades de classes, na qual incluo inclusive o socialismo, mas claro, bem depois de ter certeza absoluta da eliminação do capitalismo e sua sociedade baseada no antagonismo classista.
É óbvio também que não podemos ser ingênuos e deixarmos de tomar partido, no sentido dado por Marx no Manifesto: partido da ordem x partido da revolução, onde o partido da revolução necessita se unir: ‘trabalhadores de todos os países, uni-vos’, exortava Marx ao final do Manifesto.
Talvez um bom começo, então, fosse tentar unir o povo trabalhador no Brasil e no mundo em cima de bandeiras afins, como por exemplo a luta contra o neoliberalismo, contra o fascismo, pela paz mundial, contra a guerra e a destruição do planeta, contra qualquer forma de discriminação e contra a criminalização do movimento social etc.
Em artigo recentíssimo intitulado ‘A esquerda do século 21 é antineoliberal’, escrito em 2 de janeiro de 2016 e publicado no Brasil 247, Emir Sader (sociólogo e cientista político brasileiro) chama a atenção para a incapacidade de autocrítica dos intelectuais ligados ao movimento autonomista, que ascendeu com o FSM (Fórum Social Mundial). Os movimentos de esquerda que mais avançaram até aqui, não fincaram pé na tese anti-estatal, caso de Chávez na Venezuela, Rafael Correa no Equador, Evo Morales na Bolívia, o casal Kirshner na Argentina, Pepe Mujica no Uruguai e Lula e Dilma no Brasil.
Mas, ouçamos Emir Sader: ‘Uma década e meia depois o cenário ficou muito mais claro, não apenas no plano teórico, mas principalmente no campo político concreto. As forças que se fortaleceram – especialmente na América Latina, mas também na Europa – foram as que centraram sua luta na superação do neoliberalismo. Redefiniram o papel do Estado, ao invés de se opor a ele.  Recuperaram o papel da política e dos partidos, ao invés de rejeita-los. Teses como as de Toni Negri e de John Holloway sobre o caráter reacionário dos Estados e sobre a possibilidade de mudar o mundo sem tomar o poder, entre outras, que personificavam essas teorias, foram superadas pela realidade, enquanto o FSM se esvaziou nas mãos das ONGs’.
E segue dizendo: ‘Enquanto essas lideranças (Chávez, Evo etc.) se afirmavam, as que deveriam ser as referências das outras visões, desapareceram – como é o caso que deveria ser paradigmático do “autonomismo piqueteiro” – ou ficaram reduzidas à intranscendência – como é o caso dos zapatistas. Tudo isso aconteceu sem que os intelectuais que haviam proposto essa via como alternativa tenham minimamente feito um balanço desse fracasso. Como são intelectuais desvinculados de qualquer prática política concreta, não têm responsabilidades pelo que escreveram ontem e se dedicam a outras teses, igualmente inócuas’.
Mais adiante: ‘Alguns deles, fracassadas as teses autonomistas, se dedicaram à crítica dos governos que avançaram concretamente na superação do neoliberalismo. Sem compreender o caráter novo desses governos, os tacharam de “traidores”, de “extrativistas”, de “neodesenvolvimentistas”, muitas vezes aliando-se à direita – a verdadeira alternativa a esses governos –, contra as forças progressistas nesses países’.
É parte do senso comum, aliás criado e recriado pela mídia fascista cotidianamente, acreditar que o indivíduo precisa do Leviatã (o monstro bíblico): afinal, o ser humano tem uma ‘essência pecadora, animalesca e incontrolável’, acreditam eles. Essa imagem, na verdade, é de Hobbes, que andava assustado com o que via em tempos modernos - de desagregação da sociedade feudal e nascimento da sociedade burguesa. Tanto é que ele também é autor da frase ‘o homem é o lobo do homem’.
Mas, o ser humano é muito mais que um animal (instinto - selvagem), que em tese precisa sempre ser domesticado, como defendia Hobbes e os pensadores positivistas do século XIX, ele é também um animal que pode aprender a sentir, pensar e agir racionalmente com autonomia e espírito solidário: uma vez que esta unidade seja obtida pela ampla maioria da sociedade, estaríamos bem mais próximos de uma sociedade livre.
Outra coisa, é que precisaremos de alguma coisa similar ao Estado depois do fim do Estado, que ajude a organizar as tarefas de organização daquilo que é coletivo futuramente. Penso que Marx queria esboçar isso quando afirmou o que seria uma sociedade comunista: ‘Para o lugar da velha sociedade burguesa com as suas classes e oposições de classes entra uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos’ (Manifesto do Partido Comunista, 1848) .
Sem mais para o momento, despeço-me deixando um abraço e aguardando uma resposta menos breve que a primeira.
Fraternalmente,
Renato Fialho Jr.